
Mesmo com a falta de regulamentação e a forte oposição das Cias. aéreas, o mercado de venda de milhas aéreas era um segmento em forte expansão no Brasil.
Em 2022, o volume de transações movimentou cerca de R$ 2 bilhões, um crescimento de 20% em relação ao ano anterior.
Mesmo assim, um dos maiores players do setor, a 123milhas, pediu recuperação judicial após suspender a emissão de passagens e pacotes flexíveis em 18/08/2023. A linha promocional era mais barata por não ter datas definidas de ida e volta, nem garantias de hospedagem específicas. A justificativa foram os juros altos e o aumentos dos preços das passagens aéreas e taxas de hospedagem.
Hotmilhas e Maxmilhas, empresas do mesmo grupo da 123milhas, também anunciaram interrupção nos negócios e integram o pedido de recuperação judicial
Mas quais os motivos dessa confusão toda?
Negócio insustentável
A professora e pesquisadora de turismo da USP (Universidade de São Paulo), Mariana Aldrigui, diz que o modelo de viagem oferecido por empresas como a 123milhas é mais uma operação financeira que a venda de um serviço.
Na prática, o viajante paga para que a empresa, futuramente, consiga bancar uma viagem que acontecerá em um ano ou mais.
O consumidor compra o direito a uma viagem, e não a viagem em si.
As empresas de aviação comercial já reclamavam da atuação dos “milheiros” a algum tempo.
Jerome Cadier, presidente da LATAM Brasil, participou do Fórum Panrotas e foi duro:
Na minha opinião, estamos na direção errada, desvirtuamos um programa de fidelidade, transformando isso em uma indústria. Precisamos que o Brasil se alinhe com práticas internacionais. A Latam tem trabalhado no caminho de eliminar esse mercado de milhas, que é um câncer. Até este ano, deixamos esse câncer adormecido, mas precisamos eliminá-lo!
Jerome Cadier
Os prejuízos desse “câncer” ainda não são totalmente conhecidos, já que a 123milhas não revelou quantos pacotes da modalidade PROMO, impactada pela suspensão, foram vendidos.
O que se sabe é que a empresa reportou dívidas de mais de R$2,308 bilhões na ação do TJMG (tribunal de justiça de Minas Gerais) e que a lista de credores tem mais de 700 mil pessoas, na maioria consumidores.
O negócio brasileiro de compra e venda de milhas é único no mundo. Como envolve a transferência de informações sensíveis do consumidor (CPF, login e senha nas plataformas de fidelidade etc.), é praticamente impensável que se formem ecossistemas inteiros desta modalidade de negócio na Europa ou nos EUA, mercados turísticos mais maduros e desenvolvidos.
Mesmo assim, essas empresas cresceram e se tornaram importantes OTAs no mercado nacional.
Parte deste sucesso vem do investimento em publicidade:
O ranking Agências & Anunciantes, anuário publicado pelo jornal Meio & Mensagem, de 2021 aponta a 123milhas como o segundo maior anunciante brasileiro, com investimentos de R$1,28 bilhão.
Ela, junto com suas concorrentes, compraram R$ 2,37 bilhões em espaço publicitário.
Tanto propaganda teve um efeito inesperado:
O aumento do preço das passagens aéreas e do número de milhas necessárias para voar um trecho.
Algoritmos de Cias. Aéreas contribuíram para a quebra da 123Milhas
Os algoritmos das empresas aéreas levam em consideração uma série de fatores para calcular o preço das passagens, incluindo:
- Demanda: Quanto mais alta a demanda por um determinado voo, mais alto será o preço da passagem.
- Oferta: Quanto menor a oferta de assentos disponíveis em um determinado voo, mais alto será o preço da passagem.
- Tempo de antecedência da compra: As passagens compradas com mais antecedência tendem a ser mais baratas.
- Data da viagem: Os voos em feriados e períodos de alta temporada tendem a ser mais caros.
- Horário da viagem: Os voos em horários de pico tendem a ser mais caros.
- Política de cancelamento: Passagens com políticas de cancelamento flexíveis tendem a ser mais caras.
- Programa de fidelidade: Os clientes que participam de programas de fidelidade das companhias aéreas podem ter acesso a tarifas especiais.
Além desses fatores, os algoritmos também podem levar em consideração fatores mais complexos, como:
- Concorrência: As empresas aéreas podem ajustar os preços das passagens para competir com outras empresas aéreas que operam no mesmo mercado.
- Custos operacionais: As empresas aéreas precisam levar em consideração os custos operacionais de cada voo, como custos de combustível, manutenção e pessoal.
- Cenário econômico: As empresas aéreas podem ajustar os preços das passagens em resposta a mudanças no cenário econômico.
Os algoritmos das empresas aéreas são constantemente atualizados para refletir as mudanças nas condições do mercado. Isso significa que os preços das passagens podem variar significativamente de acordo com a época do ano, o destino e outros fatores.
Mas como eles influenciaram na quebra dos empresas “milheiras”?
Estimulados pelas propagandas, consumidores começam a fazer pesquisas por passagens nos sites das cias. aéreas, mesmo sem intenção de comprar por lá. A ideia é comparar com os preços dos “milheiros” e buscar melhores opções.
Conforme mais pessoas procuram os sites para pesquisar, algoritmos interpretam que a demanda está alta e aumentam os preços. É mais ou menos como funciona a tarifa dinâmica do UBER.
No caso da 123Milhas, essa “pesquisa que não vira compra” criou uma armadilha:
Os milhões de clientes que elas atraíam checavam o preço das passagens nas companhias aéreas, fazendo o algoritmo entender que havia alta demanda. Além disso, percebendo o aumento do comércio de milhas, as empresas aéreas incluíram um novo algoritmo, que também aumentava o número de pontos necessários para o resgate de um trecho.
Com tudo isso, ficou impossível para a 123Milhas honrar o que prometeu, já que grande parte da Linha Promo foi vendida a preços abaixo do mercado, durante e na esteira da pandemia, momento de queda geral do número de viajantes e de incerteza do mercado de turismo.
Players do Turismo Reagem
Quando um gigante cai, é possível que espalhe prejuízos e dificuldades por vários players do setor, ainda mais quando a queda não é esperada.
Por isso, operadoras, consolidadoras e brokers se posicionaram sobre o impacto da 123Milhas em seus negócios:
TBO Holidays
A TBO Holidays é uma plataforma global de distribuição de viagens B2B, conectando mais de 100.000 Compradores de Viagens com mais de um milhão de Fornecedores, em mais de 100 países.
Os hotéis disponíveis na plataforma incluem tarifas competitivas diretas, dinâmicas, e oferecem cadeias de hotéis e pacotes que os agentes de viagens podem acessar em apenas um clique. Disponibilizam também uma oferta diversificada de produtos aéreos e não aéreos, ajudando os agentes de viagens a competir efetivamente com as OTAs.
No comunicado, a TBO esclarece:
- Segue operando normalmente e mantém os planos de expansão.
- Apesar da situação da 123Milhas e dos negócios em conjunto, não terá sua capacidade afetada nem no Brasil nem no mundo.
- Todas as obrigações da TBO junto aos seus parceiros serão cumpridas, independentemente do resultado do plano de recuperação judicial da 123Milhas
Flytour
A empresa é umas das maiores consolidadoras do Brasil e parte do grupo BeFly, maior ecossistema de turismo da América Latina. O grupo embarca cerca de 700 mil passageiros por mês, e garantiu que honrará todas as suas obrigações.
A Flytour informou que a 123milhas é só mais uma das mais de 4500 agências que atende, e que não possui vínculos com o programa “LINHA PROMO” da parceira que quebrou.
EZLINK
A operadora de turismo tem 12 anos de mercado e atua globalmente, com mais de 22 mil hotéis cadastrados em sua base.
Separamos alguns pontos da nota de esclarecimento enviada pela operadora a imprensa e aos clientes:
- A EZLINK mantém seus negócios normalmente. A situação da 123Milhas não afeta a capacidade da empresa de nenhuma forma
- Embora a 123milhas tenha débitos pendentes com a EZLINK, a maioria deles se encontra com vencimentos futuros, que serão cancelados caso a inadimplência persista. O valor em 30/08 era inferior a R$1,5 Milhão e não representa impacto relevante imediato no fluxo de caixa e no comprometimento financeiro.
Confiança Turismo
O Grupo Confiança também enviou comunicado as quase 5 mil agências de viagens com quem fazem negócios regularmente.
A empresa assegurou que honrará todos os bilhetes emitidos pela 123Milhas no sistema da Confiança, e que o impacto financeiro é nulo para ela.
O grupo também esclareceu que todas as obrigações junto as cias. aéreas estão rigorosamente em dia e que qualquer que seja o resultado da recuperação judicial da 123Milhas, não haverá impacto na estrutura operacional da Confiança Turismo.
Diversa Turismo
A empresa garantiu a parceiros e agentes que sua estratégia comercial e seus compromissos comerciais permanecem inalterados.
A Diversa Turismo esclareceu que a 123Milhas já se encontrava em situação de inadimplência e recebeu repetidas notificações, sem retorno, descumprindo suas obrigações. A operadora, então, informou que a própria 123Milhas passou a realizar o cancelamento de reservas e, sem alternativa, a Diversa suspendeu e rescindiu o contrato com a 123Milhas.
ViagensPromo
A operadora reportou prejuízo de R$2,62 milhões com a quebra da 123Milhas. Esse é o valor não pago da última fatura da OTA mineira.
Mesmo assim, a ViagensPromo não terá seu caixa afetado, segundo seu sócio-diretor, Renato Kido. Com vendas entre R$50 milhões e R$55 milhões por mês, a dívida deixada pela 123Milhas não afeta as operações da empresa.
União Nacional das Agências de Viagem (Unav) também se pronuncia
Mesmo sem mencionar a 123Milhas de forma direta, a UNAV deixa claro que está atuando de maneira próxima a seus fornecedores e que seus parceiros não foram afetados de forma importante.
Aqui você pode ler o comunicado na íntegra.
E agora hoteleiros?
A situação da 123Milhas é um alerta para os hoteleiros.
A empresa era uma importante parceira para as redes hoteleiras, oferecendo descontos e condições especiais para os viajantes. A empresa também se tornou uma OTA, fazendo negócios com operadoras, agências e outros fornecedores.
A 123 Milhas atuava como uma OTA de duas maneiras:
- Como intermediária entre clientes e fornecedores: A empresa conectava clientes interessados em viagens com fornecedores de serviços turísticos, como operadoras, agências e hotéis.
- Como vendedora de pacotes turísticos: A empresa também oferecia pacotes turísticos completos, que incluíam passagens aéreas, hospedagem, aluguel de carros e outros serviços.
A suspensão das vendas da 123Milhas impactou os hoteleiros de duas maneiras principais:
- Perda de receita: A empresa era uma importante fonte de demanda para os hotéis. Com a suspensão das vendas, os hotéis perderam um canal importante de vendas.
- Risco de fraude: A empresa foi acusada de fraude por alguns fornecedores. Isso pode prejudicar a imagem dos hotéis que trabalham com a 123 Milhas.
Para se recuperar desse baque e prevenir situações como essa, os hoteleiros precisam adotar estratégias para diversificar as fontes de demanda e reduzir o risco de fraude.
Algumas dicas para os hoteleiros:
- Invista em marketing e vendas: Crie estratégias para atrair clientes diretamente para o seu hotel. No Blog da BEN temos diversas matérias sobre como fazer sem gastar mais.
- Faça parcerias com outras empresas: Junte-se a outros players do setor para oferecer pacotes ou serviços combinados. Lembre-se de verificar a idoneidade do parceiro e o índice de satisfação de seus clientes e atuais parceiros.
- Use tecnologia para automatizar processos e melhorar a eficiência operacional: A tecnologia pode ajudar os hoteleiros a economizar tempo e dinheiro, e a melhorar o atendimento ao cliente, além de proporcionar mais oportunidades de vendas e atração de potenciais hóspedes.
Adotando essas estratégias de diversificação, os hoteleiros estarão mais preparados para enfrentar os desafios do mercado e garantir o sucesso do seu negócio, dependendo cada vez menos de terceiros e aumentando seu lucro.
Palavra do CEO da BEN Hotelaria
Nosso CEO, Everson Luccas, quer deixar uma mensagem final.
O caso 123Milhas é mais um que nos dá uma lição valiosa:
É mais que necessário investir na venda direta e na profissionalização do seu setor comercial como um todo.
Suas vendas não podem depender somente de terceiros. Eles são ótimos parceiros e ajudam nas vendas, porém, você não pode deixar seus resultados na mão dos mesmos.
Everson Luccas, CEO Ben Hotelaria